O primeiro baque é o pior, me disseram pessoas que já tiveram suas casas inundadas, pessoas com quem eu nunca tinha falado, mas com quem passei a trocar mensagens nas redes sociais. No começo é o caos, depois vai se organizando, me garantiram.
A gente pôde entrar em casa dez dias depois da inundação. A primeira surpresa é o quanto tudo fica fora de lugar. Existem muito mais coisas flutuantes dentro de uma casa do que eu supunha. A geladeira tinha caído, o lixo da cozinha estava na sala, frascos do banheiro foram parar no quarto. Imagino nossas coisas navegando lá dentro ao longo dos dias, uma triste sopa de objetos contaminados por lama e esgoto.
Minhas mãos já fazem no automático o gesto de mostrar a que altura chegou a água: é a primeira pergunta de todo mundo que foi até ali nos ajudar e dos vizinhos dos andares de cima. Até aqui, eu respondo, alinhando os dedos ao limite superior da faixa marrom que cobriu a parede. Não medi, mas devem ser uns 70 centímetros de altura.
A segunda surpresa é a fragilidade dos móveis. Ainda nos momentos iniciais depois de entrar em casa, vi logo atrás da geladeira o armário da cozinha desmoronado, e entendi que haveria destruição por todos os cômodos. O MDF não apenas encharca, ele suga a água para cima e vai se transformando numa coisa mais frágil que papelão. No armário das roupas, abri esperançosa a gaveta mais alta, apenas para me deparar com um poço vazio. Todos os fundos das gavetas haviam colapsado, amontoaram-se com as coisas no meio da lama. Eu tinha imaginado muitas coisas, mas não tinha imaginado isso.
Nesse primeiro dia, a gente apenas recolheu mais algumas roupas que tinham se salvado e tiramos fotos. Foi uma visita de reconhecimento, para ter um cenário concreto em cima do qual pensar. Não vou mostrar nenhuma das imagens, são sem dúvidas as fotos mais íntimas que tenho na galeria do celular. Depois disso, ainda tivemos que esperar dois dias para que a água na rua baixasse o suficiente até que nossos amigos conseguissem entrar e começar a nos ajudar na limpeza.
No cenário maior da cidade, o som de helicópteros ainda é frequente, embora tenha diminuído. Era o vaivém constante deles que me fazia concordar com o clichê de cenário de guerra na cidade, mesmo que eu nunca tenha estado perto de uma guerra, nem daquelas famosas do outro lado do globo nem das guerras menos vistas da periferia aqui do lado. Meu imaginário de guerra vem dos filmes e, além dos helicópteros, lá também estão os corredores humanitários, como o que foi construído logo ali no centro. Para isso, derrubaram uma gigantesca passarela de pedestres que não tinha nada de atraente, mas que parecia uma daquelas estruturas urbanas que estiveram sempre ali, na saída da rodoviária, feia, cinza e triste, e ninguém nunca teria imaginado que mais triste ainda seria vê-la destruída para dar espaço à passagem de ajuda humanitária. Não sei como as pessoas se sentem na guerra, não sei como é o medo da guerra. Mas imagino que a gente compartilhe essa clara sensação de que a nossa cidade chegou ao fim, e talvez até se possa com o tempo reconstruir uma cidade, mas vai ser outra cidade.
A gente nunca acha que vai acontecer com a gente eu tenho vontade de escrever mas me corrijo a tempo: eu nunca achei que aconteceria comigo. Tem gente que já sabe até se preparar para enchente, seca ou deslizamento de tanto que acontece.
Eu nunca imaginei que veria tão de perto a destruição absoluta pela água, a escassez de necessidades básicas, um corredor humanitário. E caso eu imaginasse, eu teria me imaginado no lugar de quem leva doações, faz um pix, organiza uma ação social. Eu certamente nunca me imaginei dentro dessa categoria estatística, os desalojados, os atingidos pela inundação, os que perderam quase tudo.
Aquela casa não existe mais, me diz a amiga escritora Nathallia Protazio, no primeiro reconhecimento de que a gente não perdeu o teto nem as paredes, mas a gente perdeu a nossa casa. Chora por ela o quanto você precisar, ela me diz em seguida, com a crueza e a coragem de quem também estava naquele momento perdendo a sua.
O mutirão da limpeza foi grande e eficiente. Ao longo de quatro dias, foram mais de quinze amigos que estiveram na nossa casa. Terminaram de destruir os móveis apodrecidos, carregaram para fora um sofá que de tão encharcado eu não conseguia nem arrastar, rechearam dezenas e dezenas de sacos de lixo.
Nunca vamos poder retribuir o que os amigos fizeram por nós. Não por não haver uma dívida, mas justamente por ser uma dívida impagável. Pro resto da vida eu sei que se qualquer uma dessas pessoas me chamar às três da manhã pedindo um passaporte falso, uma maleta de dinheiro e uma carona para fora do país, eu vou dar um jeito de ao amanhecer já estar com ela atravessando a fronteira. Não tem como retribuir alguém que pegou uma esponja de cozinha, encheu de sapólio cremoso e esfregou a lama das tuas paredes, simplesmente não tem.
Eu não gosto da analogia com a guerra, mas volto a lembrar dela quando recebemos as latas de água potável distribuídas gratuitamente à população, quando vejo um vídeo de crianças na África cantando ao redor de uma bandeira do Rio Grande do Sul, quando carros da prefeitura passam pelo nosso bairro avisando por um megafone que devemos descartar restos e móveis na calçada, pois os caminhões passarão à noite.
Como tu tá, as pessoas me perguntam. Indo, eu respondo. Não tenho como me aprofundar mais que isso. Não é possível se permitir acessar toda a complexidade de sentimentos de perder o interior da própria casa e no minuto seguinte colocar num saco de lixo uma massaroca amorfa constituída de lama, restos amolecidos de MDF e todos os teus sapatos. É uma coisa ou outra, sentimentos ou sacos de lixo. E o que a gente precisa no momento é colocar na rua tudo o que antes a gente chamava de mobília e agora se chama entulho.
Tu faria o mesmo por mim, me diz a Cacá quando eu agradeço por além de ter enfrentado a lama, ela estar segurando a Baubo sozinha enquanto eu me dedico aos ritos fúnebres da casa. Ela tem razão, eu faria mesmo, e então percebo que a única retribuição à altura é essa que se desenrola continuamente ao longo de uma vida inteira: dar aos amigos a certeza de que eles podem contar conosco.
O sentimento de alívio e de conquista do momento em que olhei para a casa e ela não estava mais amarronzada pela lama é algo que nunca vou esquecer, assim como a imagem da Dani esperando do lado de fora com café e lanche, a colaboração entre a Ana e o Prestes na limpeza de dois móveis de madeira que não se desmancharam, a colaboração da Leila com o Fred no descarte das comidas, a aparição do Erico que mal chegou e logo tinha limpado a área dos fundos para colocarmos o que ainda tentaremos salvar, a naturalidade do Emir que já chegou arrancando parafusos.
Quando no último dia de mutirão, vi uma retroescavadeira usando sua garra para dar pauladas sobre os nossos antigos móveis e transformá-los em caquinhos mais portáteis para o caminhão de lixo, isso nem foi capaz de abalar minha alegria por ver as paredes da casa limpa.
Meu cérebro, que já se parece mais ao meu cérebro, fica procurando alguma dualidade nas coisas. As estantes de livros que caíram sobre si mesmas e não para a frente, salvando assim as prateleiras superiores: deve haver uma metáfora aí, eu penso, deveria contar isso à Sara para ela fazer um poema. Hoje em alguns momentos tive uma sensação de suspensão do tempo e achei poético, escreveu a Gabi numa mensagem. Depois olhamos para uma foto do primeiro dia, da lama seca em labirintos sobre as lajotas do banheiro. Me doeu admitir que era um desenho bonito, mas era. Até mesmo a retroescavadeira. Que solidez oculta existia naquele acúmulo de coisas que antes chamávamos de interior da casa a ponto de exigir a força de uma retroescavadeira para se desmanchar?
Os objetos que se salvaram estão espalhados pela cidade. O Fred levou uma mala de roupas para lavar na casa dele, a Suzana levou um caixote de louça, o Antonio levou minha impressora pra tentar arrumar, a Mariam levou os livros molhados para uma tentativa de salvamento, a Camila e o Augusto levaram livros úmidos e o que mais coube no porta-malas, a Leila levou os prêmios literários, o Xena levou nossos quadros, o Fernando e o Babu ficaram com os instrumentos do Felipe, meus pais colocaram na garagem deles uma montanha de livros secos, meu sogro está tentando salvar as roupas mais sujas numa sequência de lavagens, minha sogra está não apenas nos abrigando, mas emprestando o carro e espaço no depósito para as luminárias e os eletrodomésticos que ainda precisamos secar antes de testar.
É uma experiência meio desintegradora, e me entristece constatar isso. Penso que essa poderia ser a experiência mais radicalmente integradora da minha vida, se eu desse um jeito de sentir que em vez de estar morando em lugar nenhum, eu estou morando um pouquinho na casa de todas essas pessoas que estão protegendo nossas coisas. A gente precisou de uma rede, e ela estava ali. Ainda está.
A gente perdeu a casa que tinha, mas não perdeu tudo porque temos um lugar para o qual voltar. Ele vai estar quase vazio, mas ali agora também habitam as memórias de tantos amigos que trabalharam duro para nos devolver um lar.
Da última semana de trabalho, depois do impacto do primeiro baque, o segundo pior dia para mim foi quando todas as coisas estragadas já estavam na calçada. Senti como um ponto de não retorno, embora mesmo antes já não houvesse retorno, mas ali perdi o referencial do que era nosso.
Perguntei ao Felipe o que era o pior para ele. Pensar em tudo que ainda temos pela frente, me respondeu.
A gente sabia que haveria muito trabalho e muitos gastos pela frente, mas a gente não concebeu o que está acontecendo agora, enquanto termino de escrever este texto: a água voltou a subir no nosso bairro, no bairro ao lado, também na zona sul e nos bairros da zona norte. Em algumas dessas regiões, há pessoas que ainda nem puderam entrar em casa e estão agora mesmo vendo a inundação voltar com mais velocidade do que antes.
Eu poderia escrever mais quatro páginas sobre como tudo isso é também culpa da prefeitura e de políticos e gestores que sucatearam o departamento público de água e esgoto e deixaram de investir nos sistemas de prevenção. Mas vou guardar minha raiva para os próximos dias.
No momento, estamos de novo na situação de acompanhar à distância a elevação da água na nossa rua. Pelo menos, me diz o Felipe, agora a gente já perdeu tudo o que tinha para perder.
Pelo menos isso.
Não sei quanto mais vou organizar em palavras. A princípio, penso em fazer esses relatos até voltar a ter uma casa. Seja como for, o acesso é e permanecerá gratuito. Caso você tenha gostado e se sinta compelido a retribuir (e tenha, no momento, as condições de fazê-lo), minha chave pix é o email juliadantas@gmail.com. Deixo claro que não nutro expectativas, até porque o Rio Grande do Sul está repleto de pessoas em situações incrivelmente mais graves e todo mundo já colaborou com diferentes causas. Eu vou ter despesas imensas pela frente, mas muitos braços já se ofereceram para trabalhar e vai ficar tudo bem. Mais dia, menos dia, deixarei de pensar na destruição da enchente para voltar a pensar em criação.
Este texto pode ser compartilhado livremente em qualquer lugar, desde que sem fins comerciais, acompanhado de assinatura, link para o substack, e que me avisem, porque eu sou curiosa.
Eu fico constrangida por sentir prazer lendo os seus textos sobre a enchente. Isso deve provar uma falha de caráter minha. Embora a tristeza e o horror que você está vivendo também me deixem triste e horrorizada, paro ao final de cada parágrafo e revisito as melhores frases: que texto rico, bem escrito.
Só consegui chorar depois de ler o seu relato da semana passada. Fiquei a noite em claro na cama, contendo os soluços pra não acordar o namorado e limpando o catarro na barra do lençol. Pela manhã, ninguém notou as olheiras, nem eu comentei da insônia, da tristeza, de nada. É uma solidão absurda acompanhar a destruição de Porto Alegre a milhares de quilômetros de distância, onde as pessoas que eu conheço não têm nenhuma relação afetiva com o sul.
Obrigada por escrever e por compartilhar conosco ❤️
Júlia que lindo e triste relato. Você compartilha tua dor com tanta clareza e doçura, que te é própria, que a gente se sente abraçado e consolado por você. Tenho rezado como nunca para que a chuva passe. Diminua. Vá embora. Vá para outro lugar. Os deixe respirar e recomeçar a achar que é possível viver e sonhar. Sei que ainda não dá. Mas vai. Força querida. É muito obrigada pelo tanto que continuas nos dando.